Sou descendente de japoneses nascidos no Brasil, tive a minha infância vivida no Japão por causa dos meus pais que foram pra lá trabalhar. E mesmo vivendo lá desde o primeiro ano de vida até os nove, sempre tive a certeza de que voltaria e viveria a minha vida no Brasil. Não tive grandes problemas com a língua portuguesa ou sotaque, por meus parentes em casa sempre usarem o português entre si, mesmo que eu sempre usasse o japonês pra me comunicar com eles, já que eu passava boa parte do tempo em creche e escola. E aparentemente eu aprendi primeiro a falar em japonês, mas eu compreendia o que era dito em português na forma mais básica. E ao retornar eu havia me adaptado muito bem, por não ter tido problemas com o português ou com a escola, apesar de ter sido alfabetizada um pouco tarde, lá pelos meus 9 anos.
Porém neste período tive grandes mudanças no meu comportamento, ficando mais tímida, sendo que até então, não tinha problema algum em falar com as pessoas. E comecei a fazer muito esforço pra me encaixar neste novo lugar, passando por cima muitas vezes do que eu achava coerente e correto.
Com isso, mais tarde na adolescência, sentia que estava sempre pisando em ovos e que ninguém compreendia o meu modo de pensar e muitas vezes nas lógicas e raciocínios exigidos pela escola em assuntos que dependiam mais do “senso comum” eu errava. Sentia que a minha mente fazia caminhos diferentes para chegar no mesmo resultado, ou acabava indo a lugares completamente diferentes e muitas vezes até os professores não entendiam certas duvidas que eu trazia.
Por isso, sempre achei que eu era uma pessoa especial ou estranha, mas hoje entendo que apenas tive uma infância diferente, não assisti Teletubbies como os meus amigos, português não foi meu primeiro idioma, talvez eu tenha aprendido ambos simultaneamente sem perceber, e a maior parte da minha infância havia sido em um país completamente diferente, convivendo com pessoas diferentes.
Mesmo tendo esses fatos claros na minha vida, apenas recentemente me dei conta de que todos passam por esse processo. Mesmo no Brasil, há diferenças entre uma pessoa que cresceu no sitio, no interior de uma cidade pequena. E de uma pessoa que cresceu em uma região metropolitana, como uma capital. A diferença cultural entre norte, nordeste, sul, sudeste e centro oeste no Brasil já é bem evidente.
Então percebi o quanto a cultura molda e influencia uma pessoa, até na forma dela pensar sobre um assunto e seus atos. Quantas vezes na minha vida, não senti vergonha de não entender o que era obvio para a maioria e que pra mim soava estranho. Ou ser incompreendida por determinadas escolhas e preferencias que eu fazia no meu dia a dia.
Por este motivo eu me sentia muito insegura e pra compensar isso, tentava logo me adaptar a logica do outro, e agia de forma que parecesse normal para essas pessoas, mas quando eu fazia isso, eu me sentia muito estranha, como se estivesse fazendo algo que não é faz parte de mim. Claro que estou sempre disposta a mudar, ouvir outras formas entender o mundo, mas as mudanças são uma construção onde a pessoa acredita que está mudando para fazer algo melhor, são escolhas conscientes e que possui um significado.
Essas percepções aconteceram no ano passado, em 2018, através de um evento onde entrei novamente em contato com a cultura japonesa, só que no Brasil mesmo. E depois de entender que eu tinha sim uma individualidade e que ele foi especialmente moldado pela historia que vivi. Resolvi resgatar coisas que eram importantes e que eu gostava da cultura japonesa, que eu havia abrido mão, por achar dispensável, e necessário para me adaptar ao Brasil. Então entendi que eu não precisava ter feito isso, tudo bem as pessoas terem influências de culturas distintas entre si. Não precisamos de rótulos específicos que excluem todas as outras características da pessoa.
Após todas essas descobertas, comecei a me incomodar com os rótulos que serviam apenas para generalizar pessoas. Notei isso ao conviver com alguns amigos, que tinham a horrível mania de me chamar de “japa”, nem parecia que eu tinha nome. Até então eu não ligava, estava acostumada com isso, mas depois de toda essa descoberta de que cada pessoa tem uma individualidade, isso ficou muito feio, porque ser chamado de japa é muito genérico, visto que existem vários “japas” como eu por ai. E comecei a ficar um pouco triste, porque parecia que eu era uma pessoa qualquer, sem identidade e sem nome, um sentimento de estar sendo anulado. E em uma das vezes em que insisti ser chamada pelo nome, um dos meus amigos disse que “japa” não era uma ofensa e por isso não tinha o porquê eu reclamar. Ok, eu não levo como uma ofensa, eu sei quando alguém quer me ofender e quando não quer. E esse episódio me fez pensar mais sobre este assunto.
Então comecei a pesquisar mais sobre o assunto, já havia me deparado com questões raciais do asiático, reclamando de ser chamado de “japa” ou “china”, entre outras piadas que eu também achava engraçado. Porém eu sempre achei que esse tipo de reclamação não era tão urgente ou importante, o mundo tinha problemas maiores naquele momento. Mas eu entendi que algo havia me incomodado profundamente, e esse eu pesquisasse mais um pouco sobre o assunto, entenderia porquê outras pessoas também sentiam o mesmo. E conheci um canal no youtube chamado “Yo Ban Boo”. Que fala um pouco mais sobre essas questões abordando o problema de haver estereótipos contra os indivíduos asiáticos no Brasil.
A racialização de um grupo, nunca foi boa e ela é um sistema que subjuga a todas as minorias, independente se estamos falando da amarela, negra, indígena e outras. Especificamente aqui, falarei do uso do “mito da minoria modelo”, esse termo define os asiáticos imigrantes que carregam o estereotipo do individuo esforçado, estudioso, que trabalha sem reclamar e que geralmente não vai brigar com ninguém, por serem “bonzinhos”. E isto já foi usado como discurso para justificar as desigualdades sociais sofridas por outras minorias, principalmente a negra, como se elas não se esforçassem o suficiente, e que por isso, sofrem essas desigualdades.
O que não é verdade, os asiáticos não foram separados de seus conhecidos, familiares e sua comunidade que migrou junto consigo para o Brasil. Alias muitos se uniram, formando as colônias japonesas e principalmente não eram escravos. Enquanto que os negros foram separados e misturados até com as tribos rivais para dificultar ainda mais a comunicação entre si e sistematicamente separados de sua família. O que torna extremamente desigual e injusto querer comparar o contexto histórico sofrido por esses dois grupos distintos.
Visto tudo isso, foi desconfortável pra mim reconhecer que muitas vezes eu era conivente com o uso desses estereótipos positivos, quando eu concordo com o que a outra pessoa presume sobre quem eu sou, através de uma generalização racial, estou dizendo ok, para todos os outros tipos de generalização, inclusive o racismo anti-negro.
Por isso apesar de me sentir muito insegura tratando deste assunto, sempre com medo de as pessoas acharem que estou de mimimi, reclamando de barriga cheia. Achei importante falar sobre isso para fazer a minha parte. Não concordando com nenhum tipo de preconceito racial, mesmo sendo por estereótipos positivos.
Ao compreender isso comecei a entender o que é uma microagressão, quando as pessoas dizem estar brincando, mas na verdade estão sistematicamente dizendo coisas pejorativas as outras pessoas. Porém de forma tão sutil, que se torna imperceptível e que a um prazo pode prejudicar a vitima.
Alguns gestos também são incômodos, muitas vezes sinto meu espaço invadido, por outras pessoas estranhas. Como quando alguém me para na rua, no trabalho ou no corredor da faculdade perguntando se sou “misturada” ou “pura”, racialmente. Parece que estamos falando de um animal, se ele é de raça ou misturado.
Eu não teria problemas com essa pergunta em outros contextos, por exemplo, pra falar de cultura ou historia da família, seria muito tranquilo. E se fosse o caso de ser um evento muito raro de acontecer também seria tranquilo, mas é frequente. Se eu começo a frequentar uma localidade, as pessoas me veem ali “disponível”. E chegam com essas perguntas quando eu menos espero, sinto que a pessoa vai me pedir alguma informação e ela pergunta se eu sei falar japonês e nem é pra eu ler alguma coisa que ela não está entendendo.
E por mais inconveniente que eu sinta essa pessoa, vejo que em alguns casos realmente é uma pergunta inocente, eles estão realmente curiosos porque me acharam diferente. Mas caímos em questões do porquê, ainda as pessoas sentem estranhamento ao ver um asiático. Já se passaram 100 anos da imigração japonesa, e deveria ser normal o fato de que existimos aqui e que somos brasileiros, como todo mundo que nasce aqui. E mesmo assim somos abordados como se fossemos estrangeiros.
E quando surge uma discussão mais acalorada, as pessoas alegam que eu não posso opinar sobre qualquer coisa e justificam isso enaltecendo as características positivas do asiático. Como se todo asiático não tivesse problemas financeiros, como se não tivéssemos dificuldades em aprender e trabalhar como qualquer outra pessoa.
Por muitas vezes eu me sentia culpada por ter certas facilidades em alguns aspectos, como o desenho, mas hoje tenho noção de que se treinar bastante, abdicar de muito tempo estudando, muita gente pode desenhar melhor que eu, o que nem é tão raro de ser ver por ai. E que minha vida também tem problemas e por isso é comum como qualquer outra vida.
Um dos pontos mais interessantes pra mim neste assunto, foi entender a importância de existir várias militâncias, antes eu não achava nada, depois achei desnecessário ter tanta subdivisão de grupos. Mas pesquisando e ouvindo pessoas de diferentes grupos e minorias, notei que um dos pontos principais é o sentimento de não pertencimento que todos eles sentem, e que especificar grupos, faz com que pessoas com problemas semelhantes, tenham contato entre si. Se sentem acolhidos e protegidos, acabam desenvolvendo trabalhos e materiais de pesquisa sobre eles mesmos, para serem ouvidos e percebidos na sociedade. E no final das contas todos ganham, aprendendo e consumindo essas informações, criando oportunidade de conhecer o outro.
Há outras questões ainda como fetichização das mulheres asiáticas, o machismo na cultura, a falta de representatividade real da cultura nos filmes, os asiáticos marrons, os afro-asiáticos, asiáticos LGBT e muito mais.
.|.RMa.|.
As fontes:
Canal do Yo Ban Boo:
https://www.youtube.com/channel/UCmPMXwu814q8lDOd_OTx26Q
Texto sobre minoria modelo:
https://www.vice.com/pt_br/article/787gka/o-mito-da-minoria-modelo
Influência da cultura sobre o raciocínio:
https://www.youtube.com/watch?time_continue=4&v=2_gXGslVZDY&feature=emb_title